por Afonso Peche Filho
Pesquisador científico do Instituto Agronômico de Campinas

Vivemos em um tempo em que a relação entre humanos e natureza está em profunda crise. À medida que avançamos sobre os habitats naturais, exploramos ecossistemas e tornamos o planeta um espaço cada vez mais moldado por interesses humanos, os animais silvestres sofrem silenciosamente as consequências de nossas escolhas. Diante desse cenário, a Bioética emerge como uma luz de consciência, ética e responsabilidade coletiva. A bioética não se resume a um debate sobre o que é certo ou errado. Ela é, sobretudo, um convite à empatia, ao reconhecimento do valor intrínseco de cada ser vivo, e à escuta dos seus interesses, mesmo quando eles não podem ser expressos em palavras.

Quando falamos de animais silvestres, estamos tratando de seres que nasceram para a liberdade, para viver em harmonia com seus ecossistemas. No entanto, milhares são capturados, traficados, feridos, intoxicados ou atropelados a cada ano. Muitos chegam aos centros de acolhimento mutilados, doentes ou traumatizados. Outros, nas mãos de pessoas bem-intencionadas, mas despreparadas, têm sua saúde e comportamento natural comprometidos. Neste cenário tão desafiador, o papel dos profissionais que cuidam e acolhem animais silvestres é vital. São eles: biólogos, tratadores, educadores ambientais, veterinários, técnicos, voluntários e agentes públicos, que formam uma rede de proteção e compaixão. Sua missão vai além da técnica: é uma missão ética, que exige sensibilidade, paciência e profundo respeito pela individualidade de cada animal.

A prática do cuidado exige perguntas constantes:

  • Este animal realmente precisa da nossa intervenção?
  • Há chances reais de devolvê-lo à natureza?
  • Quais impactos estamos causando, mesmo com boas intenções?
  • Estamos respeitando seus instintos e comportamentos naturais?

Essas reflexões são parte da bioética aplicada ao cuidado silvestre. Ela não é uma regra pronta, mas um exercício contínuo de discernimento, respeito e humildade diante da complexidade da vida. Cuidar de um animal silvestre é mais do que curar feridas ou fornecer alimento. É acolher com delicadeza, reabilitar com dignidade e, quando possível, devolver à liberdade com responsabilidade. Também é preciso compreender que o cuidado ético vai além do indivíduo. Ele se estende ao seu habitat, ao equilíbrio ecológico e às relações invisíveis que aquele ser mantém com o todo. Intervir sem considerar esse contexto é arriscar romper redes que sustentam a própria vida.

Assim, a bioética se apresenta como um eixo de consciência: ela nos lembra que não somos donos da natureza, mas parte dela. Que acolher um animal silvestre é um gesto de humanidade, sim, mas também de humildade. Que proteger a vida não é um ato de caridade, mas de justiça. Em tempos de crises ambientais, de perdas aceleradas de biodiversidade e de aumento do sofrimento animal, os profissionais que cuidam e acolhem a fauna silvestre carregam consigo uma nobre tarefa: serem ponte entre o trauma e a chance de recomeço, entre a dor e a possibilidade de retorno ao lar natural.

A bioética, portanto, não é apenas um conceito. É um caminho. Um caminho de escuta, de reverência e de ação compassiva.

Publicado em

2/julho/2025

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